Sara Correia

 

Kobe Bryant representa algumas coisas que admiro bastante: o foco profundo que não ia ao sabor “dos ventos”, a capacidade de treinar ao máximo (sensatamente) e uma dedicação tenaz em melhorar-se a si enquanto atleta e pessoa.

É um exemplo de uma das capacidades que o ashtanga yoga trabalha muito em especial (e que eu tento incutir também nas aulas de hatha yoga): tapas.

E isso lembra-me quando ouço dizer que a prática de ashtanga é só acrobacia. Claro que quem diz isto é quem nunca praticou ashtanga ou quem acha que uma prática de yoga é só para ‘relaxar’ e fazer o que se quer, como se quer e o que se gosta. E este é o ponto que distingue um professor de yoga de um instrutor de ásana. Em algum ponto, um professor de yoga vai cutucar no ego do seu aluno, vai tocar nas feridas abertas desse ego (orgulho, ambição, dispersão, egoísmo, falta de honestidade com o próprio ou de seriedade, etc.).

Uma prática de ásana com a intenção correcta desenvolve todos os aspectos que Patanjali falou sobre o yoga: yamas e niyamas, ásana, pranayama, dyana, prathyara, etc. É uma pratica de tapas, de superação pessoal com o objectivo simples de nos tornarmos melhores pessoas, como ouvi Sharmila a dizer. É uma prática que vai trabalhar gostos e aversões (afinal quem gosta de fazer um Janu sirsasana C ou um navasana 5 vezes??). É uma prática que vai desenvolver todos os aspectos éticos de maneiras muito específicas.

Quando fui para Barcelona e lá pratiquei num dos shalas mais tradicionais de ashtanga yoga já fazia toda a 1ª série mas há menos de 1 ano. Na primeira prática, a professora cortou-me a prática para metade. No dia seguinte, quando voltei e terminei a prática no ponto em que ela me havia parado, ela chegou a dizer-me: “Nunca pensei que voltasses. Até hoje nenhum aluno a quem tenha cortado a prática voltou”. Na altura, eu não percebi o que ela queria dizer. Para mim, era-me indiferente em que postura estivesse. Havia tanto para aprender em cada uma delas e ainda há depois de tantos anos de prática. Em certa altura, um dos professores desse shala convidou-me para o assistir e dizia-me sempre: “no final diz-me o que achaste, o que viste”. Na terceira vez que isso aconteceu, respondi-lhe: “vejo corpos muito flexíveis, grandes posturas, mas egos muito débeis e exacerbados”. Ele sorriu e disse-me: “É isso! Isso é ashtanga. Um dia ainda vais ensinar”. Eu ri-me sem o levar a sério.

Este tapas é também usado como critério para se avançar nas séries. Não se avança para uma segunda série sem ter alguns anos de prática diária da primeira e não se avança pela segunda série dentro sem que haja já implementada uma prática regular consistente. Quando começam a haver desculpas, a prática perde-se. O foco perde-se. Há pessoas que poderiam fazer posturas da segunda série perfeitamente, mas ainda têm dificuldade nas posturas da primeira série e vice-versa. Assim como quem quer praticar segunda série, tem de ter estabelecido o compromisso de praticar diariamente. Ir com demasiada sede ao pote só serve para arranjar lesões e perder o essencial. Na prática de ashtanga, não há saltos, não há omissões, há tempo dado ao tempo. Porque a disciplina (tapas) é o primeiro passo a ser desenvolvido e dado por quem é honesto consigo próprio na sua prática. E como já disse muitas vezes, até hoje ainda não conheci ninguém que não pudesse dispensar pelo menos 1h por dia para praticar.

O facto do ásana ser o aspecto mais visível do yoga só significa que ele é a entrada para se trabalhar todos os aspectos subtis que são realmente o objecto do yoga: a mudança interior. O nosso shala tenta tudo para incentivar essa honestidade, essa dedicação e profundidade na prática porque é isso que abre as portas a tudo o mais. Porque sem isso, mais vale praticar yoga em tendinhas, ou fazer qualquer outra coisa que não é yoga.